DECLARAÇÃO DE AMOR...
''Esta é uma declaração de amor; amo a língua portuguesa.
Ela não é fácil. Não é maleável.
E, como não foi profundamente
trabalhada pelo
pensamento, a sua tendência é a de não ter
sutileza e de reagir às vezes com um
pontapé contra os que
temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de
sentimento de alerteza. E de amor.
A língua portuguesa é um verdadeiro desafio
para quem
escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas
e das pessoas
a primeira capa do superficialismo.
Às vezes assusta com o imprevisível de uma frase. Eu
gosto
de manejá-la – como gostava de estar montado num cavalo
e guiá-lo pelas
rédeas, às vezes lentamente, às vezes
a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo
nas
minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm.
Um Camões e outros iguais
não bastaram para nos dar uma
herança de língua já feita. Todos nós que
escrevemos,
estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa
que lhe dê
vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do
encantamento
de lidar com uma língua que não foi aprofundada.
O que recebi de
herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me
perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês,
que é preciso
e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever,
tornou-se absolutamente claro
para mim que eu queria mesmo
era escrever em português.
Eu até queria não ter
aprendido outras línguas: só para que
a minha abordagem do português fosse
virgem e límpida."
Clarice Lispector - ''A descoberta do mundo'' Rio de Janeiro - 1984
Editora Nova Fronteira
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