Sunday, January 23, 2011

A tristeza que veio com a chuva





Esta cena é angustiante de ver,
cão solidário e solitário com a perda de seu dono.




''O universitário Emanoel Pavani Torres, de 30 anos, que
estava na casa dos pais, em Teresópolis, na madrugada
de terça-feira, registrou todos os instantes da catás-
trofe que atingiu a cidade desde a hora em que foi
acordado, no meio da noite, até quando socorreu o
caseiro e conseguiu levá-lo para o Rio.

A casa dos pais dele está irreconhecível. Piscina,
lago e rio viraram um mar de lama. Após deixar o
caseiro, Emanoel voltou à serra com alimentos não
perecíveis para ajudar no resgate das vítimas.
"Tem muita gente, mas muita gente mesmo precisando
de socorro ....

Acordei com um barulho muito forte de temporal e
vento nas janelas. Fui até a sala, vi água no chão
e olhei para o teto achando que fosse goteira.
A semana anterior tinha sido úmida, de chuva
intermitente. Mas, agora, o quadro era diferente:
do lado de fora da casa, uma árvore caída represou
a água e fez seu nível subir até cerca de um metro
na porta de vidro que separa a sala da varanda.

Dei a volta pelos fundos, para tentar sair e ver a
situação do jardim na frente da casa. O riacho que
passa pelo terreno havia transbordado, a rua estava
completamente submersa e a piscina e o lago viraram
uma coisa só. Então, percebi que estava ilhado.

Já não tinha como chegar até o caseiro, a casa dele
fica mais perto da rua. Ele também não conseguiria
vir até a casa maior.
Escalei a chaminé da lareira para subir no telhado e
de lá chegar até a caixa d"água, numa tentativa de
avaliar na escuridão até onde ia o estrago.
Ouvi um forte barulho, percebi que a casa do caseiro
estava desmoronando. Já era uma segunda avalanche de
terra. A terceira derrubou uma parede da casa maior
e empurrou os móveis na direção da piscina. Tive a
impressão de que a construção não resistiria.
Sem celular, apenas com uma bermuda e a carteira,
esperei lá em cima até o dia amanhecer para saber
que rumo tomar.

O carro e a moto estavam perdidos, cobertos por uma
montanha de lama. O galinheiro desapareceu, os marrecos,
os patos, o cachorro, nunca mais os vi. O terreno da casa,
de 3 mil m2, fica em um vale onde vivia uma comunidade
muito carente, dizimada com os deslizamentos.
Calculo que 90% daquela população morreu ou está
desaparecida. Os sucessivos desmoronamentos traziam
não só terra, mas pedras gigantescas, troncos, partes
das casas, e corpos. Um deles, de uma criança,
foi parar no jardim de casa. A essa altura, meu
desespero já tinha virado resignação: achei que
ia morrer e aceitei isso.

Mais tranquilo, desci da caixa d"água e caminhei
pelos montes de terra até o lugar onde passava a
estrada. Gritei para ver se fazia contato com algum
vizinho. Alcancei uma casa próxima, onde havia 17 pessoas
- senhoras, adolescentes e crianças, a maior parte
desesperada. As crianças menos. Pareciam excitadas com
a "aventura", sem se darem conta da dimensão da
catástrofe. Fiquei um pouco com eles, até conseguir
retirá-los dali e encaminhá-los a um condomínio grande
que não fora atingido. Montamos ali um posto de atendimento
informal aos sobreviventes, que apareciam enlameados,
em número cada vez maior, e fornecemos água potável.
A partir daí, como a defesa civil demorou um tempo para
chegar, passei o resto da manhã e parte da tarde ajudando
no resgate das pessoas. Essa foi a parte mais dolorosa.

Apesar de ter feito um curso de primeiros socorros,
confesso que agi por instinto, sem pensar, simplesmente
fazendo o que conseguia, para não fraquejar.
Encontrei o caseiro enlameado até os cabelos e o levei
até o condomínio para que pudesse tomar água e comer
alguma coisa.
As vítimas eram transportadas em macas feitas de bambu
e cobertor para o campo de futebol da região, que
funcionou também como heliponto. O helicóptero da Globo
eventualmente levava alguém, mas, como era pequeno,
não cabia mais de uma pessoa por vez. Era preciso escolher
quem embarcaria, no meio daquele campo de agonizantes.
Foi muito ruim. Muitos dos que ficavam morriam na nossas
mãos. Uma menina grávida mudou de cor aos poucos, foi
amolecendo, e morreu. Outra eu carreguei por quase 1 km,
até o local mais próximo onde pudessem atendê-la.
Vi muitos corpos inchados, ou aos pedaços, largados na
estrada ou escorados em árvores, crianças pedindo socorro
aos prantos. Não pensei que fosse viver para ver algo assim.
Lembrei que precisava me alimentar para poder continuar.
Estava completamente sem energia, exausto, com os pés
cheios de feridas.
Fui até o condomínio para buscar o caseiro e, como
precisávamos tomar antitetânica, pegamos carona com uma
picape do Corpo de Bombeiros até o hospital.
Dali, caminhamos até a rodoviária, que fica perto, e
pegamos um ônibus para o Rio. Passei o dia juntando
mantimentos não perecíveis para levar aos sobreviventes.
Voltarei amanhã para retomar o resgate."




O diário de um sobrevivente
Emanoel Pavani Torres.
Publicado em 16 de janeiro/O Estado de São Paulo

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